POLÍTICAS DE CURRÍCULO, GEOPOLITICAS E ENSINO DE GEOGRAFIA NO BRASIL
10.01.2023
Libâneo José Carlos
Pontifícia Universidade Católica de Goiás, Goiás, Brasil
Cavalcanti Lana de Souza
Universidade Federal de Goiás, Goiás, Brasil
POLÍTICAS DE CURRÍCULO, GEOPOLITICAS E ENSINO
DE GEOGRAFIA NO BRASIL
Resumo. O artigo discute as conexões entre as orientações neoliberais para a educação escolar inseridas em documentos de organismos internacionais e as diretrizes para o currículo da escola brasileira expressas na Base Nacional Comum Curricular – BNCC, especialmente para o ensino da Geografia. Inicialmente, são mostrados os traços do neoliberalismo no contexto da globalização e internacionalização de políticas educacionais e como eles aparecem nas diretrizes curriculares. Em seguida, faz-se o registro de orientações de organismos internacionais tais como Banco Mundial, UNESCO e OCDE, e de sua projeção nas reformas educacionais especialmente no Brasil. Por fim, considerando a atual BNCC em vigência no país, apresenta-se uma análise crítica da proposta curricular para o ensino de Geografia inserida nesse documento.
Palavras-chave: neoliberalismo, políticas curriculares, geopolíticas, banco mundial, organização para cooperação e desenvolvimento econômico.
A expansão do neoliberalismo está associada a dois fenômenos interligados, a globalização e a internacionalização. Lenoir et al [7] definem a globalização como um projeto ideológico impulsionado pelo neoliberalismo econômico tendo como efeitos a submissão da população às leis do mercado, entre eles, o aumento da interdependência entre os países, convergência das economias e liberação das trocas e dos mercados e reestruturação dos Estados-nações. A internacionalização, por sua vez, refere-se a processos e ações movidos por organismos internacionais na forma de planos, programas, diretrizes e procedimentos de execução, para viabilizar a agenda global das grandes potências mundiais, especialmente nos países emergentes.
A internacionalização das políticas e o modelo da racionalidade econômica neoliberal inscritos em documentos do Banco Mundial e OCDE vêm, progressivamente, intervindo de modo direto ou indireto no planejamento das políticas educacionais, principalmente dos países emergentes. Com a lógica da obrigação de resultados, essas políticas visam ao estabelecimento de finalidades e objetivos da educação, influenciando currículos, práticas pedagógicas e a própria legislação educacional dos países. É recorrente entre analistas críticos desse modelo o entendimento de que a finalidade das escolas se reduz à preparação da força de trabalho para o mercado. Esta finalidade, desdobrada em competências cognitivas e socioemocionais, é monitorada pelos sistemas de avaliação em larga escala cujos resultados levam a formas de controle do funcionamento interno das escolas e do trabalho dos professores. Desse modo, políticas educacionais neoliberais provocam mudanças nas condições de exercício profissional dos professores como a precarização, desvalorização e intensificação do trabalho, a imposição de currículos e testes padronizados.
Geopolítica educacional: as políticas dos organismos multilaterais na américa latina. O caso do Brasil
Os clássicos vínculos entre economia e educação ganham configurações peculiares no neoliberalismo gerando necessidade de consenso global acerca do impacto de programas e ações dos governos em relação a problemas econômicos e sociais. Em relação aos países da periferia do capitalismo trata-se de explicitar o papel socializador e assistencial da educação escolar para tornar mais produtivas as capacidades dos pobres para sua inserção na economia e amenização de problemas sociais que possam obstaculizar a expansão da globalização econômica.
A partir de 1990, as diretrizes e orientações em relação a políticas educacionais de países emergentes passaram a ser formuladas por organismos multilaterais, à frente o Banco Mundial e a UNESCO. Um marco histórico foi a realização da Conferência Mundial sobre Educação para Todos, em Jomtien, Tailândia, em 1990 [15]. Seguiram-se a ela a Conferência de Cúpula de Nova Délhi, Índia (1993), Cúpula Mundial de Educação para Todos, de Dakar (2000). Mais recentemente, no Fórum Mundial de Educação, foi proclamada a Declaração de Incheón (2015) em que são reafirmados princípios da Conferência de Jontiem. Em 2000, a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico - OCDE criou o Programa Internacional de Avaliação de Estudantes – PISA, passando a ocupar lugar de destaque na orientação de políticas educacionais nos países membros e nos países parceiros, entre estes o Brasil.
Em documento de 2011, o Banco Mundial reitera a necessidade de políticas sociais para incrementar políticas econômicas, entre elas as de inclusão social voltadas para pessoas em risco de pobreza e exclusão social, de modo a permitir a plena participação na vida econômica, social e cultural [1]. Reforça-se que a “educação para todos” destina-se ao combate à pobreza e, ao mesmo tempo, ao aumento da capacidade produtiva dos pobres para o mercado, degradando o conceito de educação como desenvolvimento de todas as capacidades humanas. Desse modo, a educação fundamental, nos documentos, passa a ser um instrumento indispensável das mudanças levadas a efeito no capitalismo globalizado e para o êxito econômico global, principalmente aquela dirigida aos setores sociais mais marginalizados.
A atuação da OCDE intensificou-se a partir de 2007 com o estabelecimento de parcerias com países como a África do Sul, China, Índia, Indonésia e Brasil para influenciar esses países com orientações para decisões econômicas, jurídicas e políticas acerca de políticas públicas e programas para a educação. Recentemente, esse organismo divulgou o projeto The future of Education and Skills - Education 2030 [13], desenvolvido desde 2015 com a cooperação de governos, instituições e especialistas, visando ajudar os países a prepararem seus sistemas educacionais para o futuro e delinear elementos curriculares essenciais para a preparação dos jovens para o trabalho e para a vida, ou seja, as competências e habilidades exigidas para responder às necessidades socioeconômicas de 2030. Trata-se de ajudar cada aluno a “desenvolver-se como uma pessoa plena, realizar seu potencial e ajudar a moldar um futuro construído a partir do bem-estar das pessoas, das comunidades e do planeta” [13, p.1]. Mais do que preparar para o mundo do trabalho, a educação precisa propiciar habilidades para a cidadania ativa, responsável, engajada.
O conteúdo do Projeto Futuro da Educação 2030 permite concluir que a OCDE mantem as proposições básicas da Declaração Mundial sobre Educação para Todos formulada na Conferência Mundial Educação para Todos de Jontien (Tailândia) de 1990 como currículos centralizados, ênfase no atendimento a necessidades básicas de aprendizagem para fortalecimento de capacidades produtivas e aferição de conhecimentos e habilidades por meio de avaliações externas padronizadas. No entanto, ela reorienta essas diretrizes para finalidades educativas e proposições pedagógicas mais explícitas, ou seja, estabelecimento de um currículo supranacional, linguagem técnica unificada, construção de perfis desejáveis de formação para o sistema produtivo e realização de processos avaliativos comparativos padronizados de larga escala (por exemplo, a implantação do PISA). Nesse sentido, o currículo supranacional parece abandonar a ideia de currículo voltado para a redução da pobreza e reorientá-lo, agora, para o bem-estar individual e social de todos os segmentos sociais por meio de competências e habilidades cognitivas e socioemocionais.
As orientações de organismos internacionais estão presentes na política educacional brasileira ao menos desde os anos 1990, perpassando todos os governos até a atualidade. No entanto, com o golpe parlamentar ocorrido em 2016, forças políticas conservadoras levaram à consolidação efetiva do alinhamento das políticas educacionais às orientações dos organismos internacionais, consolidado na que estabeleceu a Base Nacional Comum Curricular - BNCC. A seguir, faz-se uma análise desse documento, especificando seu desdobramento em um dos componentes curriculares da educação básica: a Geografia.
Internacionalização das políticas educacionais e BNCC: o ensino de geografia.
O Brasil, nos últimos anos, consolidou sua inserção no quadro global de produção como país importante na produção de commodities, setor fundamental na expansão do capitalismo global. Essa posição geopolítica do país é coerente com sua adesão às políticas neoliberais, entre elas as educacionais, no sentido de garantir a manutenção dessa posição e alcançar, com isso, crescimento econômico. Com a subordinação da educação à economia e às demandas do mercado no contexto da globalização econômica, a abordagem instrumentalista do currículo tornou-se hegemônica em todo o mundo, consolidando-se o entendimento de que problemas econômicos e sociais e as fragilidades dos sistemas educacionais podem ser resolvidos com mudanças curriculares prescritivas.
No Brasil, ao longo dos últimos 30 anos, sucessivos governos vêm elaborando e implementando reformas curriculares culminando com a aprovação em 2018 da Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Trata-se de documento normativo que estabelece um conjunto de competências e habilidades consideradas como básicas para todos os estudantes, sendo a referência para a construção e adequação dos currículos de todas as redes de ensino do país. O documento abrange todos os níveis do que, no Brasil, se denomina Educação Básica: Educação Infantil (para crianças de até os 5 anos), Ensino Fundamental (para alunos de 6 a 14 anos), dividido em duas fases – anos iniciais (1º ao 5º ano escolar) e anos finais (6º ao 9º anos escolares) e Ensino Médio (para alunos de 15 a 17 anos).
Na apresentação do documento consta um tipo de estruturação curricular baseada em competências, a partir da definição de Áreas de Conhecimentos, que articula componentes curriculares e para cada um deles elenca um conjunto de Unidades Temáticas que, por sua vez, articula Objetos de Conhecimentos (conteúdos, conceitos, processos) e Habilidades, para cada ano escolar. Na BNCC do Ensino Médio [3], além das competências específicas a serem desenvolvidas nas quatro áreas de conhecimento (Linguagens e suas Tecnologias, Matemática e suas Tecnologias, Ciências da Natureza e suas Tecnologias e Ciências Humanas e Sociais Aplicadas), está prevista a definição de itinerários formativos flexíveis, que deverão ser voltados ao empreendedorismo, à investigação científica e à mediação e intervenção sociocultural.
Na parte referente ao componente curricular Geografia, o documento da BNCC tem a seguinte estruturação para cada série escolar: Unidade temática, Objeto de conhecimento (conteúdos específicos), Habilidade a ser desenvolvida.
A análise crítica do componente curricular Geografia abrange as seguintes questões: limites dos currículos padronizados e do foco nas competências, limites do currículo prescrito (rejeição de outras visões de currículo) e da concepção de conteúdos, problemas da estrutura curricular.
Quanto ao tema da padronização de referências curriculares e sua estruturação com base em competências, a justificativa dos legisladores é a necessidade de se estabelecer uma base comum de conteúdos escolares para o ensino básico, garantindo, com isso, certa equidade na formação dos cidadãos brasileiros, independentemente de classe social, diferenças étnico-raciais, de credo religioso. É um princípio importante para orientar políticas públicas, no entanto, na BNCC, a definição de conteúdos apresenta-se engessada em competências e habilidades pormenorizadas ao ponto de deixar de ser uma “referência” curricular para transformar-se numa descrição de conteúdos detalhada e hierarquicamente estruturada, deixando pouca margem para contextualizações e mediações pedagógico-didáticas necessárias. Em razão disso, a abordagem instrumentalizada do currículo leva a sobrevalorizar o currículo e secundarizar o trabalho pedagógico dos professores. Além disso, a apresentação de uma proposta fechada e detalhada, vinculando competências, conteúdos e habilidades, e a ligação a ela de outros elementos curriculares como o livro didático e as formas de avaliação, leva a identificar a BNCC como um documento prescritivo com conteúdos, metodologia e formas de avaliação padronizados, não deixando margem ao trabalho autoral autônomo dos currículos das Redes, da escola e dos professores.
Em relação aos conteúdos geográficos e seus objetivos, percebe-se uma orientação centrada na categoria espaço, como objetivo do seu ensino. Esse objetivo está relacionado à compreensão do mundo do aluno, pelo espaço geográfico, articulando para isso lugares, processos e situações geográficas. Com essa premissa, o documento afirma que a meta do ensino de Geografia é o desenvolvimento do pensamento espacial e do raciocínio geográfico. A afirmação se fundamenta na compreensão de que o pensamento espacial é fundamental para o desenvolvimento dos alunos, podendo ser alcançado com a realização do raciocínio geográfico. Face a esse entendimento, há de se argumentar que o pensamento espacial não é o eixo categórico central da Geografia, já que esta é uma capacidade a ser desenvolvida também por outras áreas do conhecimento, como matemática, arte e literatura. O pensamento espacial é importante e básico para a construção do pensamento geográfico, mas é o pensamento geográfico que traduz a capacidade de análise da espacialidade dos fenômenos, articulando conceitos (paisagem, lugar, território, região e natureza), princípios (analogia, conexão, diferenciação, distribuição, extensão, localização, ordem) e linguagens próprios [4; 5; 6]. Esse conjunto de conceitos, princípios e linguagens capacita as pessoas a realizarem a análise geográfica por meio de um pensamento totalizante. O que importa, de fato, é esclarecer que o objetivo do ensino de Geografia é que o aluno, ao utilizar o pensamento espacial (mais ligado à capacidade de localizar e de representar os fenômenos) articulando-o a outras capacidades (conceitos e raciocínios), desenvolva a capacidade de analisar a espacialidade geográfica dos fenômenos e não a espacial. O pensamento geográfico (ou raciocínio geográfico, se esta expressão for tomada como equivalente) como conjunto de capacidades intelectuais, inclui o pensamento espacial e não o contrário, como está no documento ao afirmar, por exemplo, que o raciocínio geográfico é uma maneira de exercitar o pensamento espacial.
A organização do conteúdo geográfico por área provoca a dispersão dos objetos de estudo específicos das disciplinas. Conforme a BNCC, no Ensino Fundamental, a Geografia está contemplada juntamente com História, na Área de Ciências Humanas, e no Ensino Médio, na área de Ciências Humanas e Sociais Aplicadas, juntamente com História, Filosofia, Sociologia. A estruturação do currículo por área leva à diminuição da especificidade da Geografia, podendo comprometer a análise dos objetos de conhecimento sustentada nos componentes curriculares específicos.
Outro aspecto que deve ser objeto de crítica é o alinhamento direto das políticas de currículo, da produção de material didático, dos procedimentos e instrumentos de avaliação às ações de avaliação em larga escola, ao que preconiza a BNCC. Essa determinação reforça a imposição de uma única forma de trabalho com a Geografia escolar e as demais disciplinas, levando ao empobrecimento da análise e reflexão críticas. Por exemplo, no documento Base Nacional Comum para a Formação de Professores – BNC/Formação [2], é clara a orientação de que os professores sejam formados tendo como eixo central as competências e habilidades propostas pela BNCC. No nosso entendimento, a formação docente deve ser ampla, baseada nos fundamentos pedagógicos e na ciência de referência, contemplando o conhecimento e análise de diversas possibilidades de abordar o conhecimento geográfico no ensino, entre elas a proposta pela BNCC. É assim que o professor será capaz de avaliar os limites e possibilidades de propostas curriculares e pedagógicas a serem implementadas. Há um limite claro nesse encaminhamento que subordina a formação geral para a docência a uma determinada e única interpretação da prática docente com essa disciplina escolar e suas demandas. Considera-se que o processo de formação docente implica autonomia dos Cursos de Formação no sentido de elaborar sua estrutura curricular conforme dimensões articuladas da ciência geográfica, das ciências da educação e da Geografia escolar. Em síntese, o alinhamento excessivo das políticas de currículo, da produção de material didático, dos procedimentos e instrumentos de avaliação às ações de avaliação em larga escola, como preconiza a BNCC, reforça a imposição de uma única forma de trabalho com a Geografia escolar e as demais disciplinas, levando ao empobrecimento da análise e reflexão críticas sobre questões curriculares, além de destinar aos professores o papel de aplicadores de pacotes curriculares prescritos.
Por fim, cumpre considerar que o currículo praticado nas escolas não é mera reprodução das orientações do currículo elaborado por instâncias externas [14]. Essa constatação abre espaço aos pesquisadores e professores desejosos de resistir ao caráter impositivo da BNCC, possibilitando práticas mais coerentes com suas convicções. Nessas práticas, destacam-se a definição consciente de abordagem de conteúdos, fundamentada em convicções seguras sobre a relevância da Geografia para o desenvolvimento intelectual dos alunos e para sua prática cidadã, articulada a um método de ensino que possibilite esse desenvolvimento, em situações concretas vivenciadas por professores.
Considerações Finais
O propósito deste capítulo foi apresentar conexões entre as políticas educacionais neoliberais emanadas de organismos internacionais e as propostas curriculares para países latino-americanos, trazendo como caso particular as orientações da BNCC para o ensino da Geografia. Inicialmente, foram mostrados traços do neoliberalismo no contexto da globalização e internacionalização e de como esses traços aparecem nas propostas educacionais. Em seguida, foi mostrado como orientações de organismos internacionais se projetam nas reformas educacionais de países emergentes, especialmente no Brasil. Por fim, considerando a atual BNCC em vigência no Brasil como uma condensação das políticas e propostas dos mencionados organismos internacionais, foi feita uma análise da proposta curricular para o ensino de Geografia inserida nesse documento.
A internacionalização das políticas e diretrizes para a educação e os processos globais de governabilidade dentro do modelo neoliberal produz formas deliberadas de intervenção no planejamento das políticas educacionais dos países, incidindo nas finalidades, no currículo, na legislação, nas formas de organização e gestão das escolas, nos procedimentos pedagógico-didáticos. A visão neoliberal para a educação projeta currículo de resultados visando a formação de competências gerais tendo em vista desenvolver capacidades produtivas para o mercado, dirigido principalmente ao atendimento da população pobre de países emergentes e como forte apelo à redução da pobreza e das desigualdades sociais [8; 9; 10]. Desde 1990, essa visão se projeta nas reformas educativas com o argumento de adequar os currículos ao contexto da globalização, formar capital humano para as demandas e exigências do mercado de trabalho, constituir subjetividades que condicionem os indivíduos à ordem econômica vigente. Dessa forma, o currículo de resultados é infiltrado e absorvido pelos programas e planos dos sistemas educacionais e pela legislação educacional. No caso brasileiro, a BNCC segue a lógica do currículo instrumental inscrita nos documentos do Banco Mundial, da UNESCO e da OCDE, sustentada no currículo padronizado e centralizado voltado para resultados, na busca de metas quantificáveis com base na prescrição de competências, na medição do desempenho dos alunos por meio de testes padronizados externos, na introdução de formas de controle e responsabilização da escola e dos professores pelo sucesso ou insucesso dos alunos.
Tem-se, assim, um ensino instrumental subordinado a objetivos de competências medidos por testes, em que são excluídos os conhecimentos científicos e culturais e em que desaparecem os processos de ensino-aprendizagem que podem promover e ampliar os processos psíquicos superiores, isto é, o desenvolvimento da personalidade. Desse modo, as políticas de currículo impulsionadas pelos organismos internacionais levam à reificação da avaliação como promotora da qualidade de ensino, pondo de lado a real qualidade e sentido da educação, isto é, a promoção do desenvolvimento humano global como requisito para enfrentar as desigualdades escolares e sociais [9].
Por fim, cumpre realçar que nenhuma proposta educacional é neutra, ela está enredada em relações de poder e em relações conflituosas entre grupos e classes sociais por onde vão se constituindo as desigualdades sociais. Continua posto, assim, o desafio de construção de um currículo e de uma escola orientados para a democratização da sociedade e para o cumprimento dos direitos humanos e sociais. Talvez o caminho esteja no envolvimento dos educadores na conceituação do significado de uma escola socialmente justa [11], ou seja, a escola que assegura o acesso de todos aos conteúdos culturais e científicos como meio de promoção e ampliação do desenvolvimento intelectual, social, afetivo, estético, tendo em conta a diversidade sociocultural e enlaçada com as condições sociais, culturais e materiais de vida dos alunos.
Referências
1. Banco Mundial (World Bank Group Education Strategy 2020.) (2011). Learning for All: Investing in People’s Knowledge and Skills to Promote Development. Banco Mundial.BRASIL. Ministério da Educação. (2018). Base Nacional Comum Curricular - BNCC. Brasília, DF.
2. Brasil. (2019). Resolução cne/cp Nº 2, de 20 de dezembro de 2019. Brasília, DF.
3. Brasil. Ministério da Educação. (2018). Base Nacional Comum Curricular - BNCC. Brasília, DF.
4. Cavalcanti, Lana de S. (2019). Pensar pela geografia: ensino e relevância social. Goiânia: C&A Alfa Comunicação.
5. Cavalcanti, Lana de S. (2017). O trabalho do professor de Geografia e tensões entre demandas da formação e do cotidiano escolar. In: Ascenção, Valéria de O. R. e outros. Conhecimento da Geografia: percursos de formação docente e práticas na educação básica. Belo Horizonte, BH, Editora da UFMG.
6. Cavalcanti, Lana de S. (2012). O ensino de Geografia na escola. São Paulo, Campinas, Editora Papirus.
7. Lenoir, Yves. (2016). Du libéralisme au néolibéralisme : quels impacts pour les finalités éducatives scolaires et pour les savoirs disciplinaires. In: LENOIR, Yves et al. (orgs.). Les finalités éducatives scolaires: Pour une étude critique des approches théoriques, philosophiques et idéologiques. Saint-Lambert (Quebec, Canadá): Groupéditions Editeurs.
8. Libâneo, José Carlos. (2016). School educative aims and internationalization of educational policies: impacts on curriculum and pedagogy. European Journal of Curriculum Studies, v. 3, n. 2.
9. Libâneo, José Carlos. (2018). Políticas educacionais neoliberais e escola: uma qualidade de educação restrita e restritiva. In: Libâneo, José Carlos; freitas, Raquel A. M. da M. (org.). Políticas educacionais neoliberais e escola pública: uma qualidade restrita de educação escolar. Goiânia: Espaço Acadêmico.
10. Libâneo, José Carlos. (2019). Finalidades educativas escolares em disputa, currículo e didática. In: LIBÂNEO, José Carlos; ROSA, Sandra Valéria L.; Suanno, Marilza Vanessa R.; Echalar, Adda Daniela Lima F. (org.). Em defesa do direito à educação escolar: didática, currículo e políticas educacionais em debate. Goiânia: CEPED/Espaço Acadêmico.
11. Libâneo, José Carlos. (2020). Currículo de resultados, atenção à diversidade, ensino para o desenvolvimento humano: contribuição ao debate sobre a escola justa. In: BOTO, Carlota; Santos, Vinício M.; Silva, Vivian B.; Oliveira, Zaqueu V. (orgs.). A escola pública em crise: inflexões, apagamentos e desafios. São Paulo: LF.
12. Oecd. Future of education and skills 2030 - OECD learning compass 2030: a series of concept notes, (2019). Disponivel em http://www.oecd.org/education/2030-project/teaching-and-learning/ learning/learning-compass-2030/OECD_Learning_Compass_2030.pdf.
13. Oecd. The Future of Education and Skills Education 2030. Paris, (2018). Disponível em: https://www.oecd.org/education/2030-project/contact/E2030_Flyer_2019.pdf.
14. Sacristán, José Gimeno. (2000). O currículo: uma reflexão sobre a prática. 3. ed. Porto Alegre: Artmed.
15. Unesco. (1990). Declaração Mundial sobre Educação para Todos e plano de ação para satisfazer as necessidades básicas de aprendizagem. Jomtien, Tailândia.
Pontifícia Universidade Católica de Goiás, Goiás, Brasil
Cavalcanti Lana de Souza
Universidade Federal de Goiás, Goiás, Brasil
POLÍTICAS DE CURRÍCULO, GEOPOLITICAS E ENSINO
DE GEOGRAFIA NO BRASIL
Resumo. O artigo discute as conexões entre as orientações neoliberais para a educação escolar inseridas em documentos de organismos internacionais e as diretrizes para o currículo da escola brasileira expressas na Base Nacional Comum Curricular – BNCC, especialmente para o ensino da Geografia. Inicialmente, são mostrados os traços do neoliberalismo no contexto da globalização e internacionalização de políticas educacionais e como eles aparecem nas diretrizes curriculares. Em seguida, faz-se o registro de orientações de organismos internacionais tais como Banco Mundial, UNESCO e OCDE, e de sua projeção nas reformas educacionais especialmente no Brasil. Por fim, considerando a atual BNCC em vigência no país, apresenta-se uma análise crítica da proposta curricular para o ensino de Geografia inserida nesse documento.
Palavras-chave: neoliberalismo, políticas curriculares, geopolíticas, banco mundial, organização para cooperação e desenvolvimento econômico.
A expansão do neoliberalismo está associada a dois fenômenos interligados, a globalização e a internacionalização. Lenoir et al [7] definem a globalização como um projeto ideológico impulsionado pelo neoliberalismo econômico tendo como efeitos a submissão da população às leis do mercado, entre eles, o aumento da interdependência entre os países, convergência das economias e liberação das trocas e dos mercados e reestruturação dos Estados-nações. A internacionalização, por sua vez, refere-se a processos e ações movidos por organismos internacionais na forma de planos, programas, diretrizes e procedimentos de execução, para viabilizar a agenda global das grandes potências mundiais, especialmente nos países emergentes.
A internacionalização das políticas e o modelo da racionalidade econômica neoliberal inscritos em documentos do Banco Mundial e OCDE vêm, progressivamente, intervindo de modo direto ou indireto no planejamento das políticas educacionais, principalmente dos países emergentes. Com a lógica da obrigação de resultados, essas políticas visam ao estabelecimento de finalidades e objetivos da educação, influenciando currículos, práticas pedagógicas e a própria legislação educacional dos países. É recorrente entre analistas críticos desse modelo o entendimento de que a finalidade das escolas se reduz à preparação da força de trabalho para o mercado. Esta finalidade, desdobrada em competências cognitivas e socioemocionais, é monitorada pelos sistemas de avaliação em larga escala cujos resultados levam a formas de controle do funcionamento interno das escolas e do trabalho dos professores. Desse modo, políticas educacionais neoliberais provocam mudanças nas condições de exercício profissional dos professores como a precarização, desvalorização e intensificação do trabalho, a imposição de currículos e testes padronizados.
Geopolítica educacional: as políticas dos organismos multilaterais na américa latina. O caso do Brasil
Os clássicos vínculos entre economia e educação ganham configurações peculiares no neoliberalismo gerando necessidade de consenso global acerca do impacto de programas e ações dos governos em relação a problemas econômicos e sociais. Em relação aos países da periferia do capitalismo trata-se de explicitar o papel socializador e assistencial da educação escolar para tornar mais produtivas as capacidades dos pobres para sua inserção na economia e amenização de problemas sociais que possam obstaculizar a expansão da globalização econômica.
A partir de 1990, as diretrizes e orientações em relação a políticas educacionais de países emergentes passaram a ser formuladas por organismos multilaterais, à frente o Banco Mundial e a UNESCO. Um marco histórico foi a realização da Conferência Mundial sobre Educação para Todos, em Jomtien, Tailândia, em 1990 [15]. Seguiram-se a ela a Conferência de Cúpula de Nova Délhi, Índia (1993), Cúpula Mundial de Educação para Todos, de Dakar (2000). Mais recentemente, no Fórum Mundial de Educação, foi proclamada a Declaração de Incheón (2015) em que são reafirmados princípios da Conferência de Jontiem. Em 2000, a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico - OCDE criou o Programa Internacional de Avaliação de Estudantes – PISA, passando a ocupar lugar de destaque na orientação de políticas educacionais nos países membros e nos países parceiros, entre estes o Brasil.
Em documento de 2011, o Banco Mundial reitera a necessidade de políticas sociais para incrementar políticas econômicas, entre elas as de inclusão social voltadas para pessoas em risco de pobreza e exclusão social, de modo a permitir a plena participação na vida econômica, social e cultural [1]. Reforça-se que a “educação para todos” destina-se ao combate à pobreza e, ao mesmo tempo, ao aumento da capacidade produtiva dos pobres para o mercado, degradando o conceito de educação como desenvolvimento de todas as capacidades humanas. Desse modo, a educação fundamental, nos documentos, passa a ser um instrumento indispensável das mudanças levadas a efeito no capitalismo globalizado e para o êxito econômico global, principalmente aquela dirigida aos setores sociais mais marginalizados.
A atuação da OCDE intensificou-se a partir de 2007 com o estabelecimento de parcerias com países como a África do Sul, China, Índia, Indonésia e Brasil para influenciar esses países com orientações para decisões econômicas, jurídicas e políticas acerca de políticas públicas e programas para a educação. Recentemente, esse organismo divulgou o projeto The future of Education and Skills - Education 2030 [13], desenvolvido desde 2015 com a cooperação de governos, instituições e especialistas, visando ajudar os países a prepararem seus sistemas educacionais para o futuro e delinear elementos curriculares essenciais para a preparação dos jovens para o trabalho e para a vida, ou seja, as competências e habilidades exigidas para responder às necessidades socioeconômicas de 2030. Trata-se de ajudar cada aluno a “desenvolver-se como uma pessoa plena, realizar seu potencial e ajudar a moldar um futuro construído a partir do bem-estar das pessoas, das comunidades e do planeta” [13, p.1]. Mais do que preparar para o mundo do trabalho, a educação precisa propiciar habilidades para a cidadania ativa, responsável, engajada.
O conteúdo do Projeto Futuro da Educação 2030 permite concluir que a OCDE mantem as proposições básicas da Declaração Mundial sobre Educação para Todos formulada na Conferência Mundial Educação para Todos de Jontien (Tailândia) de 1990 como currículos centralizados, ênfase no atendimento a necessidades básicas de aprendizagem para fortalecimento de capacidades produtivas e aferição de conhecimentos e habilidades por meio de avaliações externas padronizadas. No entanto, ela reorienta essas diretrizes para finalidades educativas e proposições pedagógicas mais explícitas, ou seja, estabelecimento de um currículo supranacional, linguagem técnica unificada, construção de perfis desejáveis de formação para o sistema produtivo e realização de processos avaliativos comparativos padronizados de larga escala (por exemplo, a implantação do PISA). Nesse sentido, o currículo supranacional parece abandonar a ideia de currículo voltado para a redução da pobreza e reorientá-lo, agora, para o bem-estar individual e social de todos os segmentos sociais por meio de competências e habilidades cognitivas e socioemocionais.
As orientações de organismos internacionais estão presentes na política educacional brasileira ao menos desde os anos 1990, perpassando todos os governos até a atualidade. No entanto, com o golpe parlamentar ocorrido em 2016, forças políticas conservadoras levaram à consolidação efetiva do alinhamento das políticas educacionais às orientações dos organismos internacionais, consolidado na que estabeleceu a Base Nacional Comum Curricular - BNCC. A seguir, faz-se uma análise desse documento, especificando seu desdobramento em um dos componentes curriculares da educação básica: a Geografia.
Internacionalização das políticas educacionais e BNCC: o ensino de geografia.
O Brasil, nos últimos anos, consolidou sua inserção no quadro global de produção como país importante na produção de commodities, setor fundamental na expansão do capitalismo global. Essa posição geopolítica do país é coerente com sua adesão às políticas neoliberais, entre elas as educacionais, no sentido de garantir a manutenção dessa posição e alcançar, com isso, crescimento econômico. Com a subordinação da educação à economia e às demandas do mercado no contexto da globalização econômica, a abordagem instrumentalista do currículo tornou-se hegemônica em todo o mundo, consolidando-se o entendimento de que problemas econômicos e sociais e as fragilidades dos sistemas educacionais podem ser resolvidos com mudanças curriculares prescritivas.
No Brasil, ao longo dos últimos 30 anos, sucessivos governos vêm elaborando e implementando reformas curriculares culminando com a aprovação em 2018 da Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Trata-se de documento normativo que estabelece um conjunto de competências e habilidades consideradas como básicas para todos os estudantes, sendo a referência para a construção e adequação dos currículos de todas as redes de ensino do país. O documento abrange todos os níveis do que, no Brasil, se denomina Educação Básica: Educação Infantil (para crianças de até os 5 anos), Ensino Fundamental (para alunos de 6 a 14 anos), dividido em duas fases – anos iniciais (1º ao 5º ano escolar) e anos finais (6º ao 9º anos escolares) e Ensino Médio (para alunos de 15 a 17 anos).
Na apresentação do documento consta um tipo de estruturação curricular baseada em competências, a partir da definição de Áreas de Conhecimentos, que articula componentes curriculares e para cada um deles elenca um conjunto de Unidades Temáticas que, por sua vez, articula Objetos de Conhecimentos (conteúdos, conceitos, processos) e Habilidades, para cada ano escolar. Na BNCC do Ensino Médio [3], além das competências específicas a serem desenvolvidas nas quatro áreas de conhecimento (Linguagens e suas Tecnologias, Matemática e suas Tecnologias, Ciências da Natureza e suas Tecnologias e Ciências Humanas e Sociais Aplicadas), está prevista a definição de itinerários formativos flexíveis, que deverão ser voltados ao empreendedorismo, à investigação científica e à mediação e intervenção sociocultural.
Na parte referente ao componente curricular Geografia, o documento da BNCC tem a seguinte estruturação para cada série escolar: Unidade temática, Objeto de conhecimento (conteúdos específicos), Habilidade a ser desenvolvida.
A análise crítica do componente curricular Geografia abrange as seguintes questões: limites dos currículos padronizados e do foco nas competências, limites do currículo prescrito (rejeição de outras visões de currículo) e da concepção de conteúdos, problemas da estrutura curricular.
Quanto ao tema da padronização de referências curriculares e sua estruturação com base em competências, a justificativa dos legisladores é a necessidade de se estabelecer uma base comum de conteúdos escolares para o ensino básico, garantindo, com isso, certa equidade na formação dos cidadãos brasileiros, independentemente de classe social, diferenças étnico-raciais, de credo religioso. É um princípio importante para orientar políticas públicas, no entanto, na BNCC, a definição de conteúdos apresenta-se engessada em competências e habilidades pormenorizadas ao ponto de deixar de ser uma “referência” curricular para transformar-se numa descrição de conteúdos detalhada e hierarquicamente estruturada, deixando pouca margem para contextualizações e mediações pedagógico-didáticas necessárias. Em razão disso, a abordagem instrumentalizada do currículo leva a sobrevalorizar o currículo e secundarizar o trabalho pedagógico dos professores. Além disso, a apresentação de uma proposta fechada e detalhada, vinculando competências, conteúdos e habilidades, e a ligação a ela de outros elementos curriculares como o livro didático e as formas de avaliação, leva a identificar a BNCC como um documento prescritivo com conteúdos, metodologia e formas de avaliação padronizados, não deixando margem ao trabalho autoral autônomo dos currículos das Redes, da escola e dos professores.
Em relação aos conteúdos geográficos e seus objetivos, percebe-se uma orientação centrada na categoria espaço, como objetivo do seu ensino. Esse objetivo está relacionado à compreensão do mundo do aluno, pelo espaço geográfico, articulando para isso lugares, processos e situações geográficas. Com essa premissa, o documento afirma que a meta do ensino de Geografia é o desenvolvimento do pensamento espacial e do raciocínio geográfico. A afirmação se fundamenta na compreensão de que o pensamento espacial é fundamental para o desenvolvimento dos alunos, podendo ser alcançado com a realização do raciocínio geográfico. Face a esse entendimento, há de se argumentar que o pensamento espacial não é o eixo categórico central da Geografia, já que esta é uma capacidade a ser desenvolvida também por outras áreas do conhecimento, como matemática, arte e literatura. O pensamento espacial é importante e básico para a construção do pensamento geográfico, mas é o pensamento geográfico que traduz a capacidade de análise da espacialidade dos fenômenos, articulando conceitos (paisagem, lugar, território, região e natureza), princípios (analogia, conexão, diferenciação, distribuição, extensão, localização, ordem) e linguagens próprios [4; 5; 6]. Esse conjunto de conceitos, princípios e linguagens capacita as pessoas a realizarem a análise geográfica por meio de um pensamento totalizante. O que importa, de fato, é esclarecer que o objetivo do ensino de Geografia é que o aluno, ao utilizar o pensamento espacial (mais ligado à capacidade de localizar e de representar os fenômenos) articulando-o a outras capacidades (conceitos e raciocínios), desenvolva a capacidade de analisar a espacialidade geográfica dos fenômenos e não a espacial. O pensamento geográfico (ou raciocínio geográfico, se esta expressão for tomada como equivalente) como conjunto de capacidades intelectuais, inclui o pensamento espacial e não o contrário, como está no documento ao afirmar, por exemplo, que o raciocínio geográfico é uma maneira de exercitar o pensamento espacial.
A organização do conteúdo geográfico por área provoca a dispersão dos objetos de estudo específicos das disciplinas. Conforme a BNCC, no Ensino Fundamental, a Geografia está contemplada juntamente com História, na Área de Ciências Humanas, e no Ensino Médio, na área de Ciências Humanas e Sociais Aplicadas, juntamente com História, Filosofia, Sociologia. A estruturação do currículo por área leva à diminuição da especificidade da Geografia, podendo comprometer a análise dos objetos de conhecimento sustentada nos componentes curriculares específicos.
Outro aspecto que deve ser objeto de crítica é o alinhamento direto das políticas de currículo, da produção de material didático, dos procedimentos e instrumentos de avaliação às ações de avaliação em larga escola, ao que preconiza a BNCC. Essa determinação reforça a imposição de uma única forma de trabalho com a Geografia escolar e as demais disciplinas, levando ao empobrecimento da análise e reflexão críticas. Por exemplo, no documento Base Nacional Comum para a Formação de Professores – BNC/Formação [2], é clara a orientação de que os professores sejam formados tendo como eixo central as competências e habilidades propostas pela BNCC. No nosso entendimento, a formação docente deve ser ampla, baseada nos fundamentos pedagógicos e na ciência de referência, contemplando o conhecimento e análise de diversas possibilidades de abordar o conhecimento geográfico no ensino, entre elas a proposta pela BNCC. É assim que o professor será capaz de avaliar os limites e possibilidades de propostas curriculares e pedagógicas a serem implementadas. Há um limite claro nesse encaminhamento que subordina a formação geral para a docência a uma determinada e única interpretação da prática docente com essa disciplina escolar e suas demandas. Considera-se que o processo de formação docente implica autonomia dos Cursos de Formação no sentido de elaborar sua estrutura curricular conforme dimensões articuladas da ciência geográfica, das ciências da educação e da Geografia escolar. Em síntese, o alinhamento excessivo das políticas de currículo, da produção de material didático, dos procedimentos e instrumentos de avaliação às ações de avaliação em larga escola, como preconiza a BNCC, reforça a imposição de uma única forma de trabalho com a Geografia escolar e as demais disciplinas, levando ao empobrecimento da análise e reflexão críticas sobre questões curriculares, além de destinar aos professores o papel de aplicadores de pacotes curriculares prescritos.
Por fim, cumpre considerar que o currículo praticado nas escolas não é mera reprodução das orientações do currículo elaborado por instâncias externas [14]. Essa constatação abre espaço aos pesquisadores e professores desejosos de resistir ao caráter impositivo da BNCC, possibilitando práticas mais coerentes com suas convicções. Nessas práticas, destacam-se a definição consciente de abordagem de conteúdos, fundamentada em convicções seguras sobre a relevância da Geografia para o desenvolvimento intelectual dos alunos e para sua prática cidadã, articulada a um método de ensino que possibilite esse desenvolvimento, em situações concretas vivenciadas por professores.
Considerações Finais
O propósito deste capítulo foi apresentar conexões entre as políticas educacionais neoliberais emanadas de organismos internacionais e as propostas curriculares para países latino-americanos, trazendo como caso particular as orientações da BNCC para o ensino da Geografia. Inicialmente, foram mostrados traços do neoliberalismo no contexto da globalização e internacionalização e de como esses traços aparecem nas propostas educacionais. Em seguida, foi mostrado como orientações de organismos internacionais se projetam nas reformas educacionais de países emergentes, especialmente no Brasil. Por fim, considerando a atual BNCC em vigência no Brasil como uma condensação das políticas e propostas dos mencionados organismos internacionais, foi feita uma análise da proposta curricular para o ensino de Geografia inserida nesse documento.
A internacionalização das políticas e diretrizes para a educação e os processos globais de governabilidade dentro do modelo neoliberal produz formas deliberadas de intervenção no planejamento das políticas educacionais dos países, incidindo nas finalidades, no currículo, na legislação, nas formas de organização e gestão das escolas, nos procedimentos pedagógico-didáticos. A visão neoliberal para a educação projeta currículo de resultados visando a formação de competências gerais tendo em vista desenvolver capacidades produtivas para o mercado, dirigido principalmente ao atendimento da população pobre de países emergentes e como forte apelo à redução da pobreza e das desigualdades sociais [8; 9; 10]. Desde 1990, essa visão se projeta nas reformas educativas com o argumento de adequar os currículos ao contexto da globalização, formar capital humano para as demandas e exigências do mercado de trabalho, constituir subjetividades que condicionem os indivíduos à ordem econômica vigente. Dessa forma, o currículo de resultados é infiltrado e absorvido pelos programas e planos dos sistemas educacionais e pela legislação educacional. No caso brasileiro, a BNCC segue a lógica do currículo instrumental inscrita nos documentos do Banco Mundial, da UNESCO e da OCDE, sustentada no currículo padronizado e centralizado voltado para resultados, na busca de metas quantificáveis com base na prescrição de competências, na medição do desempenho dos alunos por meio de testes padronizados externos, na introdução de formas de controle e responsabilização da escola e dos professores pelo sucesso ou insucesso dos alunos.
Tem-se, assim, um ensino instrumental subordinado a objetivos de competências medidos por testes, em que são excluídos os conhecimentos científicos e culturais e em que desaparecem os processos de ensino-aprendizagem que podem promover e ampliar os processos psíquicos superiores, isto é, o desenvolvimento da personalidade. Desse modo, as políticas de currículo impulsionadas pelos organismos internacionais levam à reificação da avaliação como promotora da qualidade de ensino, pondo de lado a real qualidade e sentido da educação, isto é, a promoção do desenvolvimento humano global como requisito para enfrentar as desigualdades escolares e sociais [9].
Por fim, cumpre realçar que nenhuma proposta educacional é neutra, ela está enredada em relações de poder e em relações conflituosas entre grupos e classes sociais por onde vão se constituindo as desigualdades sociais. Continua posto, assim, o desafio de construção de um currículo e de uma escola orientados para a democratização da sociedade e para o cumprimento dos direitos humanos e sociais. Talvez o caminho esteja no envolvimento dos educadores na conceituação do significado de uma escola socialmente justa [11], ou seja, a escola que assegura o acesso de todos aos conteúdos culturais e científicos como meio de promoção e ampliação do desenvolvimento intelectual, social, afetivo, estético, tendo em conta a diversidade sociocultural e enlaçada com as condições sociais, culturais e materiais de vida dos alunos.
Referências
1. Banco Mundial (World Bank Group Education Strategy 2020.) (2011). Learning for All: Investing in People’s Knowledge and Skills to Promote Development. Banco Mundial.BRASIL. Ministério da Educação. (2018). Base Nacional Comum Curricular - BNCC. Brasília, DF.
2. Brasil. (2019). Resolução cne/cp Nº 2, de 20 de dezembro de 2019. Brasília, DF.
3. Brasil. Ministério da Educação. (2018). Base Nacional Comum Curricular - BNCC. Brasília, DF.
4. Cavalcanti, Lana de S. (2019). Pensar pela geografia: ensino e relevância social. Goiânia: C&A Alfa Comunicação.
5. Cavalcanti, Lana de S. (2017). O trabalho do professor de Geografia e tensões entre demandas da formação e do cotidiano escolar. In: Ascenção, Valéria de O. R. e outros. Conhecimento da Geografia: percursos de formação docente e práticas na educação básica. Belo Horizonte, BH, Editora da UFMG.
6. Cavalcanti, Lana de S. (2012). O ensino de Geografia na escola. São Paulo, Campinas, Editora Papirus.
7. Lenoir, Yves. (2016). Du libéralisme au néolibéralisme : quels impacts pour les finalités éducatives scolaires et pour les savoirs disciplinaires. In: LENOIR, Yves et al. (orgs.). Les finalités éducatives scolaires: Pour une étude critique des approches théoriques, philosophiques et idéologiques. Saint-Lambert (Quebec, Canadá): Groupéditions Editeurs.
8. Libâneo, José Carlos. (2016). School educative aims and internationalization of educational policies: impacts on curriculum and pedagogy. European Journal of Curriculum Studies, v. 3, n. 2.
9. Libâneo, José Carlos. (2018). Políticas educacionais neoliberais e escola: uma qualidade de educação restrita e restritiva. In: Libâneo, José Carlos; freitas, Raquel A. M. da M. (org.). Políticas educacionais neoliberais e escola pública: uma qualidade restrita de educação escolar. Goiânia: Espaço Acadêmico.
10. Libâneo, José Carlos. (2019). Finalidades educativas escolares em disputa, currículo e didática. In: LIBÂNEO, José Carlos; ROSA, Sandra Valéria L.; Suanno, Marilza Vanessa R.; Echalar, Adda Daniela Lima F. (org.). Em defesa do direito à educação escolar: didática, currículo e políticas educacionais em debate. Goiânia: CEPED/Espaço Acadêmico.
11. Libâneo, José Carlos. (2020). Currículo de resultados, atenção à diversidade, ensino para o desenvolvimento humano: contribuição ao debate sobre a escola justa. In: BOTO, Carlota; Santos, Vinício M.; Silva, Vivian B.; Oliveira, Zaqueu V. (orgs.). A escola pública em crise: inflexões, apagamentos e desafios. São Paulo: LF.
12. Oecd. Future of education and skills 2030 - OECD learning compass 2030: a series of concept notes, (2019). Disponivel em http://www.oecd.org/education/2030-project/teaching-and-learning/ learning/learning-compass-2030/OECD_Learning_Compass_2030.pdf.
13. Oecd. The Future of Education and Skills Education 2030. Paris, (2018). Disponível em: https://www.oecd.org/education/2030-project/contact/E2030_Flyer_2019.pdf.
14. Sacristán, José Gimeno. (2000). O currículo: uma reflexão sobre a prática. 3. ed. Porto Alegre: Artmed.
15. Unesco. (1990). Declaração Mundial sobre Educação para Todos e plano de ação para satisfazer as necessidades básicas de aprendizagem. Jomtien, Tailândia.